O
calendário dos últimos dias não deixa dúvidas de que somos marcados por datas,
renovadas a cada final ou começo de ciclo, ou criadas e aguardadas com
expectativa, e que às vezes nos mantém atentos para o tempo pensado de forma
invertida, ou seja, quando avaliamos quanto tempo ainda falta para acontecer
aquilo que foi planejado e, enfim, inaugurar a projeto – o que, na verdade, já vem
acontecendo desde o momento de sua concepção... É a forma como entendo, por
exemplo, a decisão de peregrinar o Caminho de Santiago, que não há de iniciar
com o primeiro passo numa manhã fria em Saint Jean Pied de Port, para trilhar o
Caminho Francês, muito menos a partir da despedida da majestosa Sé de Oporto,
ponto emblemático de partida do Caminho Português, mas, quando efetivamente se tem
tal inspiração.
Neste
contexto, sinto há algum tempo a próxima peregrinação a Santiago de Compostela,
agora pelo Caminho Inglês, que pela primeira vez farei em companhia de minha
amada Sandra – o que tornará a jornada inusitada! Hoje, efetivamente, estou, ou
melhor, estamos distantes cinco meses do embarque para Madri, e de lá para
Londres, na Inglaterra, onde estão um dos muitos portos de despedida dos peregrinos
medievais às relíquias de Tiago Maior, o Apóstolo de Jesus, que repousam na
cripta da Catedral de Compostela. Naquela época, era comum a viagem por mar,
numa rota direta à costa espanhola, atravessando o Golfo de Biscaia, ou mediante
escala em Santander ou Gijón, e, com segurança, seguindo pelo litoral até
Ferrol, já na Galícia, a partir de onde se tornou tradicional o início do
trecho por terra, algo em torno de 120 quilômetros até a Cidade Santa.
Outra
opção para quem não pretendia fazer o longo e difícil trecho por mar era
atravessar o Canal da Mancha e, desde Paris, adotar a Via Turonensis, cruzando
a França e, pouco antes de atravessar os Pirineus, decidir pelo Caminho do
Norte, seguindo pelo litoral da Espanha, ou optar por Saint Jean Pied de Port, pelo
Caminho Francês, para alcançar Roncesvalles, na Província de Navarra, ou ainda desviar
até Somport, para assumir o Caminho Aragonês – encontrando então o Caminho
Francês em Puente la Reina...
Pode
até ser possível resgatar o itinerário marítimo do Caminho Inglês – tal como
teria ocorrido, no século XV, na famosa peregrinação do monge agostiniano William
Wey... –, considerando o funcionamento da linha regular da companhia Brittany Ferries,
com cômodas embarcações, algumas com capacidade para 1.500 passageiros e 470 carros,
ligando Plymouth, na Inglaterra, a Santander, na Costa Cantábrica. Porém, não
só pelo custo, decidi traçar nosso Caminho Inglês por terra, encantando com as
informações que há algum tempo garimpo sobre a Via Turonensis, ou Via de Tours,
que é uma das quatro rotas na França do Caminho de Santiago, a mais ao Norte.
A
Via Turonensis tem referência no primeiro capítulo do Livro V do Codex Calixtinus – a famosa compilação
de textos sobre o Caminho de Santiago, datada do século XII – que cita pontos
de passagem da rota francesa, como San
Martín de Tours, Saint-Hilaire de
Poitiers, Saint-Jean-d'Angély, Saint-Eutrope de Saintes e Bordeaux...
Nos
dias de hoje, a Via Turonensis inicia na igreja medieval de
Saint-Jacques-de-la-Boucherie, em Paris, e passa por Orleans, Tours, Poitiers e
Bordeaux e, em Ostabat-Asme, na Aquitânia, se une a outras duas rotas: a Via
Lemovicensis (que inicia na Abadia de Madeleine, em Vézelay, mas seu nome
deriva de Limoges...), e a Via Podiensis (que começa em Puy-en-Velay, em Auvergne...).
Juntas, as três chegam a Saint Jean Pied de Port, para atravessar os Pirineus
até Roncesvalles e seguir a Compostela. A quarta rota francesa ao túmulo de
Santiago é a Via Tolosana, a mais ao Sul, cujo início acontece em Arlés e que
tem esse nome por passar em Toulousse. Escolhendo esta via, como deve ter feito
Francisco em sua célebre peregrinação desde Assis, a tendência é seguir a
Oloron-Saint-Marie, onde será feita a opção por Saint Jean Pied de Port ou
Somport.
Neste
momento, nosso plano de Caminho Inglês inicia... emblematicamente, inicia em
Londres, atravessa o Canal da Mancha, para em Paris adotarmos a Via Turonensis,
incluindo paradas em Tours e Bordeaux, e, pelo litoral, alcançarmos a Espanha
em Santander, depois Ferrol, totalizando algo em torno de 1.900 quilômetros.
Considerando que Ferrol dista cerca de 120 quilômetros de Compostela, nossa
viagem contemplará mais de 2.000 quilômetros. Ah! Naturalmente, com exceção do
trecho de Ferrol a Compostela, que peregrinaremos a pé, atravessaremos de
Londres a Ferrol utilizando meios variados, como trem, ônibus, carro...
Não
tenho dúvidas que o itinerário é viável e será capaz de proporcionar muitas
emoções, não só para nós, que estaremos percorrendo rotas seculares da peregrinação a Santiago, mas a todos os amigos que estiverem dispostos a nos acompanhar
nesta caminhada.
Feliz
2016! Paz e Bem + Buen Camino!
#pedrasdocaminho