Bula do Papa Julius II, de 23 de setembro de 1512: Ano Jubilar no
Caminho Lebaniego
Não é de hoje que ouço a frase, curta e em tom de
espanto, toda vez que alguém me pergunta, ou se não me pergunta eu revelo que
estou indo para a Espanha peregrinar o Caminho de Santiago de Compostela. Não
costumo me aborrecer com tal manifestação, ainda que a incredulidade possa ser
interpretada sob diferentes ângulos, que não os relaciono, deixando ao sabor da
criatividade de cada um. Prefiro, aliás, o mais singelo, o sincero desconhecimento
de meu interlocutor sobre a dimensão do universo jacobeo. Assim tenho a chance
de discorrer sobre a famosa rota de peregrinação cristã, desde a descoberta do
sepulcro do Apóstolo Tiago Maior, no primeiro terço do século IX, que fomentou os
inúmeros itinerários de diferentes pontos da Europa, notadamente da própria Espanha,
Portugal e França.
Desta vez, contudo, enfrentar o questionamento é ainda mais
complexo, pois, efetivamente, neste mês de junho peregrinarei o Caminho
Lebaniego, que não é exatamente um Caminho a Santiago de Compostela...
O queeee?!?!?!
A resposta é outra grande oportunidade, pois diante do
aparente interesse passo a relatar o pouco daquilo que nada sei sobre o que
alguns historiadores convencionaram chamar de rota tangencial do Caminho de
Santiago.
Capturei este conceito quando escrevia “Busca sem fim”, o
terceiro livro da trilogia Pedras do Caminho, que trata de minha peregrinação
pelo Caminho Aragonês a Santiago de Compostela. Sem ter a plena noção que
estava adotando uma rota tangencial, logo após Jaca deixei o itinerário
tradicional para alcançar Atarés e chegar ao Monastério de San Juan de la Peña.
O lugar é mágico e sua tradição afirma que abrigou o Santo Graal e as relíquias
de São Indalécio, discípulo de Santiago e um dos Sete Varões Apostólicos...
Este é o trecho de “Busca sem fim”, no qual o conceito é explicado
pelo escritor espanhol Bizén d’o Rio Martínez. Escreveu ele, numa tradução
livre:
“A crença na eficácia da intercessão dos santos para o
perdão dos pecados foi algo generalizado que se arraigou lentamente, fazendo
que, imperceptivelmente, à peregrinação com um objetivo específico, ou seja,
Santiago de Compostela, fosse adicionada uma rota tangencial, que levava o
peregrino a visitar, às vezes por devoção e outras por obrigação, como no caso
dos prisioneiros, um famoso monastério ou santuário, buscando a distância e a
dificuldade de acesso...”.
O Caminho Lebaniego leva o peregrino ao Monastério de
Santo Toríbio de Liébana, na Cantábria, onde repousam, além das relíquias do então
bispo de Astorga, Santo Toríbio (402 - 460), a Lignum crucis, o maior pedaço da cruz de Jesus Cristo, que Toríbio
trouxe de Jerusalém. Não bastassem estas motivações, desde 16 de abril passado o
Caminho Lebaniego comemora seu Ano Jubilar. O privilégio foi concedido em 23 de
setembro de 1512 pelo Papa Julius II (nº 216 da Igreja Católica, de 1503 a 1513),
que, por meio de uma bula (leia o texto
na íntegra ao final), estabeleceu que todo ano em que o Dia de Santo
Toríbio cai em domingo é Ano Santo, quando é aberta a Porta Santa, a Porta do
Perdão. Este ano, por conta das comemorações da Páscoa, a abertura da Porta
aconteceu no domingo seguinte, 23. A passagem por ela e a obediência a um
minucioso ritual garantem indulgência plenária ao peregrino, que no Lebaniego também
é chamado cruceño ou cruzeiro.
A rota ao Monastério de Santo Toríbio de Liébana pode ser
realizada a partir de dois famosos Caminhos de Santiago. O peregrino do Caminho
do Norte, que cruza a Espanha pelo litoral, pode adotar o desvio a partir de San
Vicente de la Barquera. Afastando-se do litoral, serão cerca de 75 quilômetros
pela Cordilheira Cantábrica, com belas paisagem e uma vista estupenda dos Picos
de Europa. Já o peregrino do Caminho Francês, o mais famoso dos itinerários que
levam a Compostela, deve utilizar o desvio em Mansilla de las Mulas, seguindo aquele
que é denominado Caminho Vadiniense, com cerca de 153 quilômetros até o Monastério.
Naturamente, é possível somar essas duas rotas
tangenciais e atravessar do Caminho do Norte para o Francês e vice-versa, venerar
a “Lignum crucis”, e continuar a peregrinação a Santiago de Compostela. Este não
será o meu caso. Estou programado para peregrinar tão somente o Caminho
Lebaniego – o que não considero pouco.
Ooooutro livro?!?!?!
Quem sabe! Creio que sim. Minha busca pelos mistérios do
Caminho de Santiago é permanente. Quanto mais encontro respostas mais
indagações surgem, o que cristaliza em mim a máxima socrática de que o que sei
é que nada sei. Desde a primeira peregrinação a Compostela, em 2009, pelo
Caminho Francês, persigo a história do Caminho de Santiago, que compartilho por
meio de livros. O fruto de uma série de peregrinações está detalhado em sete
livros, sendo o último deles, “Juntos no Caminho de Santiago, as pedras do
Caminho Inglês”, lançado em abril num encontro memorável na Igreja Anglicana de
Santos.
Sobre as questões que guardo comigo espero refletir com
profundidade nos dias em que peregrinarei o Caminho Lebaniego. Este é o meu
foco, nesses dias que antecedem meu retorno à Península Ibérica. Daquilo que
semear e colher espero ter o discernimento necessário para compartilhar com
alegria, colaborando para fomentar ainda mais a mística sobre o Caminho de
Santiago.
Sete vezes estive em Compostela e em duas delas não
cheguei caminhando. A primeira foi em 2012, quando para lá me dirigi após
peregrinar o Caminho Aragonês. Realizei apenas o trecho de 180 quilômetros, de
Somport a Puente la Reina, onde a tradição anuncia que o Aragonês se encontra
com o Caminho Francês. Um encontro que na verdade acontece um pouco antes, em
Obanos... De Puente la Reina peguei um ônibus a Pamplona e de lá o trem que me
levou a Compostela. Relato essa experiência em “Busca sem fim”.
A outra vez foi em 2014, ao resgatar a célebre
peregrinação de Francisco, no século XIII, quando, em companhia de minha esposa
Sandra, percorremos o trajeto de Assis a Compostela. Na ocasião, comemoramos os
800 anos do feito de Francisco e os 30 anos de nossa união. Atravessamos esses
2.500 quilômetros de ônibus, trem e carro. E foi de carro que chegamos à Plaza
do Obradoiro. “Passos do Amor”, da série Descobrindo Novos Caminhos, relata os detalhes
da peregrinação do poverello e de
nossa viagem.
Nas outras cinco vezes fui caminhando a Compostela e
posso assegurar que é emocionante chegar exausto à Plaza do Obradoiro e
ajoelhar-se aos pés da magnífica Catedral, onde na cripta repousam as relíquias
do Apóstolo Tiago Maior. Os dias peregrinando são verdadeiramente os grandes momentos
em que o peregrino se depara consigo e festeja o seu reencontro. É no Caminho
que se proliferam os questionamentos, as dúvidas e muitas vezes se encontram as
respostas, capazes de gerar novas e consequentes dúvidas. Contudo, nada se
compara ao fim, ao instante fatal, ao enfrentar-se a metáfora da morte. Sucumbir
e viver na plenitude o instante da transformação, extasiado com a energia do
Campo Santo e podendo compartilhar este renascimento com outros peregrinos.
Estou chegando. Santiago, Passa à Frente!
Buen Camino!
Esta é a íntegra da bula do Papa Julius II:
Julio, Obispo,
Siervo de los siervos de Dios, a los amados hijos abades de los monasterios de
San Facundo y de San Salvador de Onís, de la diócesis de León y Burgos y de San
Vicente de Oviedo, salud y apostólica bendición.
Hemos recibido la
querella de los amados hijos prior y comunidad del Monasterio acostumbrado a
gobernarse por el prior de Santo Toribio de Liébana, de la Orden de San Benito,
de la diócesis de León, en que se contiene que es lícito por indulto de la
autoridad apostólica al prior y a la comunidad y al Monasterio predichos que
todos y cada uno de los fieles de ambos sexos que visitaren devotamente la iglesia
de dicho Monasterio en que descansa el cuerpo del mismo Santo Toribio, en otro
tiempo Obispo de Astorga, y donde se guardan una gran parte de la Cruz del
Señor que allí resplandece con continuos milagros, en la fiesta del predicho
Santo Toribio, y cuando cae en domingo en los siete días inmediatamente
siguientes a la fiesta, puedan ganar
indulgencia plenaria y remisión de todos sus pecados, de que estuvieren
contritos de corazón y confesados; y que los predichos prior y comunidad
estuvieron en pacífica posesión de estas facultades desde tiempo inmemorial más
allá de cuyo principio no hay memoria entre los hombres. Sin embargo de esto Juan Sánchez (Saneii),
Pedro González (Gundisalvi) y Alfonso Martínez (Marini) y algunos otros
clérigos, aún constituidos en dignidad eclesiástica, y religiosos y seglares de
las ciudades y diócesis de León, Astorga y Burgos, pretendiendo falsamente que
el predicho indulto no se extiende a los siete días inmediatos siguientes a
dicha fiesta, han tratado de impedir contra justicia que el prior y comunidad
puedan usar y gozar este indulto; y sobre esto han intentado inferir y de hecho
han inferido e infieren ciertas graves molestias, perjuicios, impedimentos,
inquietudes y perturbaciones con daño de sus almas y perjuicio y gravamen no
escaso de los mismos prior y comunidad. Por lo cual de parte de los mismos
prior y comunidad humildemente se nos ha suplicado que juzguemos y declaremos
que conforme a lo contenido y a tenor de este indulto los dichos fieles
cristianos que visitaren dicha iglesia en la fiesta de Santo Toribio y cuando
esta fiesta ocurriere en domingo tanto la fiesta como los siguientes siete días
inmediatos, en la forma dicha, puedan ganar indulgencia plenaria en remisión de
todos sus pecados; y que los dichos clérigos y laicos que se oponen, sean
obligados y compelidos a desistir de estos impedimentos, perturbaciones, gocen
de este indulto, y que nos dignásemos proveer lo oportuno en benignidad
apostólica. Por esto mandamos a vuestra discreción por letras apostólicas que
llamados los que hubieren de llamarse y
oídos, juzguéis lo que fuere justo en apelación remota, haciendo que lo que
decretareis se observe firmemente por censura eclesiástica. Y a los testigos
que se nombraren, si por gracia o por oído o temor evadiesen el cumplimiento de
su deber, compeledlos con censura semejante, cesando la apelación, a dar
testimonio de la verdad. Y si no pudiereis intervenir todos en estas
ejecuciones, intervengan dos o uno de vosotros.
Dado en Roma,
junto a San Pedro, año de la Encarnación del Señor, mil quinientos doce, día
nono de las calendas de octubre (23 de septiembre), de nuestro Pontificado año
nono.
www.facebook.com/CebolaFerraz
#pedrasdocaminho
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Buen camino y buen retorno
ResponderExcluirObrigado. Buen Camino!
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